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REMEDIAÇÃO

Gavias SliderLayer - REMEDIAÇÃO

  • REMEDIAÇÃO
    Processos adotados na reparação
    de danos apresentam graves falhas
    e desrespeitam os direitos humanos

Em março de 2016, quatro meses após o rompimento da barragem, o governo federal, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, seus respectivos órgãos ambientais e as empresas Samarco, Vale e BHP firmaram o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), que estabeleceu diretrizes para a implantação de programas socioambientais e socioeconômicos para a reparação dos danos causados pelo desastre.

A partir do TTAC e acordos subsequentes, em especial o Termo de Ajustamento Preliminar, seu respectivo Aditivo e o Termo de Ajustamento de Conduta conhecido como TAC Governança, foi estabelecido um sistema de governança para a implementação desses programas, que tinha como principal executora a Fundação Renova, criada em agosto daquele ano. Algumas ações emergenciais de enfrentamento aos danos causados pelo desastre, contudo, começaram antes mesmo do TTAC, geridas diretamente pela Samarco, proprietária da Barragem de Fundão.

Como parte de seu escopo de trabalho, o Projeto Rio Doce analisou dados relativos aos processos de remediação dos danos socioeconômicos decorrentes do desastre da Barragem de Fundão executados pela Fundação Renova.

Nas avaliações realizadas sobre a remediação, constatou-se a necessidade de mudança em procedimentos, no formato do levantamento de informações sobre os danos e sua reparação.

Entre outros problemas, foram apontados atrasos nos programas reparatórios, falhas nos critérios de apuração – e pagamento dos lucros cessantes e outros equívocos – como o entendimento de que, ao optar por um sistema indenizatório simplificado, as famílias deixariam de ter direito ao auxílio emergencial. Percebeu-se também que foram desconsiderados determinados tipos de danos no processo de indenização. Os problemas identificados conformam uma situação de abuso aos direitos humanos da população atingida.

Racismo e reparação

Em um país marcado pelo racismo estrutural, populações negras se encontram permanentemente em situação de vulnerabilidade e sofrem de forma mais acentuada os efeitos de um desastre.

Análise técnica feita pelas equipes do Projeto Rio Doce mostra que a questão racial não foi levada em conta no processo de remediação após o rompimento da Barragem de Fundão. A questão racial foi ignorada na coleta de dados dos atingidos pela Fundação Renova, gerando um quadro de invisibilidade. Há também evidências de violações e abusos de direitos no tratamento desigual e até discriminatório conferido a pessoas negras pelos agentes da reparação.

Essa revisão realizada pela equipe do Projeto Rio Doce baseou-se em uma Abordagem Baseada em Direitos Humanos para a Resposta e Reconstrução de Desastres Envolvendo Empresas (ver detalhamento abaixo) e produziu relatórios sobre algumas iniciativas, aspectos e ações de reparação.

PARÂMETROS A SEREM ADOTADOS POR EMPRESAS NO CONTEXTO DE DESASTRES

Devem ser responsivos às experiências e expectativas das pessoas atingidas

Devem ser acessíveis, adequados e céleres a julgar pelas necessidades das pessoas atingidas

Não devem gerar temor de vitimização nas pessoas atingidas

Devem oferecer diferentes formas de reparação às pessoas atingidas

Devem viabilizar a participação efetiva das pessoas atingidas

Devem ser avaliados a partir da perspectiva das pessoas atingidas

Devem buscar equilibrar assimetrias existentes entre as pessoas atingidas e a empresa responsável pela reparação

Devem dar às pessoas atingidas o acesso às informações necessárias sobre seus direitos

Devem ser acessíveis de forma não discriminatória

ANÁLISE DAS AÇÕES DE REPARAÇÃO

Nesta página, encontram-se os pontos mais relevantes das avaliações feitas pelo Projeto Rio Doce sobre algumas das ações de remediação em curso sob responsabilidade da Fundação Renova, como pode ser visto nos destaques abaixo:

Ouvidoria

A Ouvidoria da Fundação Renova (FR) foi criada com o objetivo de ser um canal para que as comunidades atingidas tivessem acesso a um mecanismo para denúncias e reclamações relativas aos processos de reparação e remediação da FR, com caráter confidencial. As manifestações geradas na Ouvidoria da Samarco desde novembro de 2015 foram incorporadas pela Ouvidoria da FR.

A discussão acerca da estrutura e gestão do Pilar Ouvidoria do Programa Diálogo, Comunicação e Participação Social (PG06) data de sua concepção e já foi objeto de diversos estudos e pareceres técnicos da FGV. Segundo o PG06, esse canal deve ser de ampla divulgação, apresentar relatórios trimestrais e cumprir prazo de 20 dias para resposta final a partir da data do protocolo.

Em uma análise de documentos e do banco de dados da Ouvidoria da FR realizada em 2019, observou-se uma demora superior a seis meses para a resolução da maioria dos chamados. Para aprimorar o canal, o Projeto Rio Doce, em parceria com a consultoria Ramboll, fez 28 recomendações, como a contratação de um ouvidor geral e a revisão de fluxos e processos, com o objetivo de garantir transparência, previsibilidade e redução do tempo de resolução.

A contratação do ouvidor geral ocorreu em dezembro daquele ano e as demais recomendações foram em parte cumpridas ao longo de 2020. Em 2021, após avaliação conjunta com experts, ouvidor geral e equipe da Ouvidoria, as recomendações foram atualizadas, resultando em 15 novos itens de melhoria.

Uma das recomendações desse novo estudo consiste em uma proposta de categorização temática das denúncias da Ouvidoria da Fundação Renova, considerando a severidade dos danos e a vulnerabilidade das pessoas atingidas e o teor central de suas demandas. Essa categorização tem como meta auxiliar na transparência, no aprendizado contínuo e na qualificação da atuação da Ouvidoria no processo de reparação do desastre do Rio Doce e junto aos mecanismos internos da FR. Assim, impactos adversos sobre os direitos humanos, reais ou potenciais, podem ser mais prontamente identificados e tratados de forma apropriada pela Ouvidoria.

Como exemplo, as 3.920 denúncias recebidas pelo canal entre janeiro de 2020 e julho de 2021 foram categorizadas em 12 temas e 91 subtemas. Uma avaliação sistemática das denúncias por categoria auxiliam a identificar vulnerabilidades e danos severos, que podem ser identificados por meio de manifestações repetidas, orientando a atuação da Fundação Renova e o aprimoramento dos programas em curso, além de trazer mais transparência ao processo.

Cadastro Socioeconômico

A análise do cadastro concebido pela Fundação Renova para identificar os atingidos e atingidas, assim como os danos sofridos, revelou, entre outras conclusões, a existência de critérios excludentes nos procedimentos utilizados para cadastramento. Não foram considerados danos imateriais, à saúde e aqueles relativos à água, nem impactos indiretos. Houve também diagnóstico de demora excessiva no atendimento individual (média de 194 dias).

Auxílio Financeiro Emergencial (AFE)

AFE é o auxílio financeiro mensal pago às pessoas que sofreram impacto direto na sua atividade econômica ou produtiva em decorrência do rompimento da Barragem de Fundão. Não se trata de um programa indenizatório, mas de uma medida de resposta por meio de transferência de renda, voltada para reduzir vulnerabilidades e a exposição a riscos, além de aprimorar capacidades da população atingida para reagir. É parte das obrigações das empresas poluidoras a implementação de medidas para garantir que todas as pessoas atingidas se encontrem em segurança e tenham suas necessidades básicas e de sobrevivência atendidas.

A quantidade de pessoas que estava sem receber o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) até março de 2021 por conta das dificuldades de comprovação dos danos relatados representa 38% das famílias cadastradas, o equivalente a 11.586 famílias. Esse é um número sensível, se considerarmos o prazo de cinco anos após o desastre.

EVOLUÇÃO DE TITULARES DE AFE - CAMPANHAS 1, 2, 3 E MARIANA
TAXA DE COBERTURA DO AFE

 

 

Fonte: elaboração própria (2021) com base nos dados dos cadastros da Fundação Renova (2021) e na base de pagamentos do AFE da Fundação Renova (2021). Observações: foram considerados apenas os pagamentos do AFE ativos em dezembro de 2019. Foram considerados apenas os casos em que os titulares dos AFE foram encontrados na base de dados do cadastro. Versão do cadastro: 20/04/2021. Versão da base de pagamentos do AFE: 20/04/2021.

Ao longo do tempo, observa-se uma redução no número de AFEs concedidos, com queda de 843 auxílios e 2.702 pessoas assistidas pelo programa de setembro de 2019 a abril de 2021. A taxa de cobertura é de 38,84% das famílias cadastradas, com maior taxa para o baixo Rio Doce (47,23%) e a menor taxa para o litoral adjacente (28,76%). Chama a atenção o fato do indicador nunca ultrapassar 50% na análise do recorte geográfico. Um ponto positivo na análise é a proporção de atendimento a famílias mais vulneráveis ser ligeiramente superior ao de famílias com maior renda per capita. A taxa de cobertura tem como objetivo verificar o percentual de famílias cadastradas e potencialmente elegíveis (classificação adotada pela FGV a partir dos critérios definidos pela Fundação Renova) ao AFE que foram de fato atendidas pelo programa na comparação ao total de famílias elegíveis.

Os cancelamentos de pagamentos estão atrelados, entre outros fatores, a discussões sobre a natureza jurídica do programa, com entendimento, pela Fundação Renova e Samarco, de que poderia haver descontos no valor a ser indenizado no âmbito do Programa de Indenização Mediada. No entanto, o TRF1 confirmou que o TTAC estabelece dois programas com natureza autônoma entre si, o AFE e o PIM, não havendo possibilidade de desconto entre as indenizações pagas por cada um.

Outro fator que tem reduzido expressivamente a quantidade de titulares do AFE foi a implementação do Sistema Indenizatório Simplificado – Novel (veja mais informações aqui), a partir de julho de 2020, pelo qual a Fundação Renova e as empresas haviam imposto a quitação geral de todas as obrigações financeiras para recebimento de indenizações, incluindo, segundo o seu entendimento, a quitação dos pagos via AFE. Segundo dados disponibilizados judicialmente pelas empresas, até início de abril de 2021, 82% dos titulares de AFE haviam aderido ao Sistema Indenizatório Simplificado. Vale apontar que, conforme decisão de setembro de 2022, a quitação com relação ao AFE aos aderentes ao Sistema Indenizatório Simplificado foi revista pela Justiça, determinando o seu reestabelecimento e o pagamento dos valores em atraso.

Somam-se a esses fatores problemas identificados no AFE em relação ao seu desenho, implementação, critérios e procedimentos. Entre eles:

Cobertura e focalização das famílias potencialmente elegíveis

Inadequações de critérios de elegibilidade e de comprovação dos danos

Problemas estruturais no Programa de Cadastro, como o formato da coleta de informações e a não obrigatoriedade de comprovação de danos

Falta de informação acerca das negativas ou cancelamento do auxílio

Não considerar a composição da renda familiar nas informações cadastrais

Falta de priorização de pessoas e famílias em condição de vulnerabilidade

Invisibilidade de grupos quanto ao gênero (mulheres), pirâmide etária (jovens e idosos) e indígenas e comunidades tradicionais, bem como daqueles que exercem atividades de subsistência.

Essas problemáticas são corroboradas pelo fato de que o AFE é um tema frequentemente trazido pelos atingidos e atingidas nos Canais de Relacionamento e na Ouvidoria da Fundação Renova. São mais de 17 mil manifestações acumuladas entre 2015 e abril de 2021. Já na Ouvidoria, chamam atenção situações em que as mulheres, inscritas como dependentes dos seus maridos (ou ex-cônjuges), descrevem que sofreram violência patrimonial e, algumas vezes, doméstica. Assim, a titularidade feminina desse tipo de programa é importante não só para assegurar um uso mais efetivo do recurso no âmbito dos gastos da família como também para mitigar possíveis reproduções de desigualdades de gênero.

Vale ressaltar também a relevância do programa no âmbito das discussões do Sistema CIF, notadamente nas câmaras técnicas de Organização Social (CT-OS) e de Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais (CT-IPCT). Existem diversas deliberações, descumpridas pela Fundação Renova, que restrigem as possibilidades de cancelamentos e cortes no auxílio, além de definir o alcance do programa e o seu escopo.

Situação das mulheres

As recomendações internacionais de reparação de desastres enfatizam a necessidade de tratamento prioritário a grupos vulneráveis. Como esse objetivo, o Projeto Rio Doce avaliou como as demandas das mulheres estavam sendo reconhecidas e processadas nas ações da Fundação Renova, com base nos dados da Ouvidoria.

Nesses relatos, predominaram queixas sobre renda e atividade econômica, programas da Fundação, questões de saúde, sobrecarga doméstica e aumento de conflitos familiares e comunitários, muitas vezes de forma cruzada.

Moradia

A demora da Fundação Renova na resposta e reparação de danos severos ao direito à moradia das comunidades atingidas pelo desastre podem agravar essa situação de uma forma irreversível. A espera prolongada pelo reassentamento coletivo levou muitas famílias que se viram desabrigadas a desistir do processo ou procurar indenização individual, que não garante a reconstrução do seu modo de vida anterior ao rompimento da barragem. As famílias atingidas que continuam no processo de reassentamento coletivo, por sua vez, deparam-se com decisões que ameaçam sua qualidade de vida. O terreno escolhido para o reassentamento da comunidade de Paracatu de Baixo, em Mariana (MG), apresenta uma declividade superior a 30%, o que dificulta o acesso a partes internas das residências e de espaços de uso comunitário.

 

Racismo

Questão racial é ignorada em processo de remediação do desastre

Em um país marcado pelo racismo estrutural, populações negras se encontram permanentemente em situação de vulnerabilidade e, por isso, tendem a sofrer de forma mais acentuada os efeitos de um desastre. Essa perturbação da ordem social exacerba problemas de direitos humanos preexistentes e leva ainda a novas violações e abusos de direitos, agravando as vulnerabilidades dessas populações e potencializando as desigualdades raciais e sociais presentes nos territórios.

Análise técnica feita pelas equipes do Projeto Rio Doce mostra que a questão racial não foi levada em conta no processo de remediação após o rompimento da Barragem de Fundão. A questão racial foi ignorada na coleta de dados dos atingidos pela Fundação Renova, gerando um quadro de invisibilidade. Há também evidências de violações e abusos de direitos no tratamento desigual e até discriminatório conferido a pessoas negras pelos agentes da reparação.

A omissão das empresas e da Fundação Renova em relação à questão racial causou e causa diversos prejuízos à vida das pessoas negras atingidas e não se restringiu à etapa do cadastro, que serve como base primordial para o levantamento do perfil das pessoas atingidas, uma vez que não existem planejamento e ações efetivas para garantir equidade nos processos e práticas antidiscriminatórias nas demais etapas da reparação.

O racismo também se manifesta a partir de microagressões, que se acumulam ao longo do tempo e que foram potencializadas pelo rompimento da barragem e da chegada de pessoas estranhas aos territórios (funcionários das empresas, da Fundação Renova, do poder público, dentre outros) que alteram as dinâmicas sociais. Evidencia-se que a omissão da Fundação Renova causou e causa diversos novos prejuízos às pessoas negras atingidas.

Os diversos casos levantados sugerem que existe um tratamento desigual conferido às pessoas negras, que se sentem coagidas, humilhadas, desrespeitadas e invisibilizadas em suas demandas, além de serem expostas de maneira desigual e mais acentuada que outros grupos raciais aos efeitos negativos do desastre, o que constitui racismo ambiental. Muitas pessoas relataram não só a morosidade da Fundação Renova em atender aos seus pleitos e demandas, como também a percepção de que há uma discriminação por detrás desta demora e não priorização no atendimento.

A análise leva ainda à apresentação de parâmetros para reorientar o processo de reparação de forma que ele não seja um mecanismo de perpetuação de práticas discriminatórias, principalmente do ponto de vista racializado.

 

RACISMO E SILENCIAMENTO

RACISMO E SILENCIAMENTO

O racismo é um fenômeno complexo.

Ele pode ser abordado por meio das perspectivas individualista, institucional e estrutural.

No caso da remediação do desastre do rompimento da Barragem de Fundão, estes três aspectos foram evidenciados. Houve discriminação no âmbito individual por parte dos funcionários das empresas para com as pessoas negras atingidas. Também foi registrado tratamento desigual, ocultamento da dimensão racial, morosidade no atendimento de demandas individuais e coletivas, gerando tensões sociais no território e conflitos comunitários, no âmbito institucional. Por último, do silenciamento sistêmico das questões raciais e ausência de pessoas negras nos espaços de decisão, uma face do racismo estrutural. 

 

No desastre do rompimento da Barragem de Fundão, a identidade branca representa e ocupa os espaços de poder e decisão e é, no limite, quem dita o que é ou não um dano, e quem é ou não atingido. A invisibilização da questão racial pode ser entendida dentro do contexto de um “pacto narcísico da branquitude'' em que pessoas brancas, embebidas da ideia de universalidade branca, na reparação, se colocam como “resolvedores”. Isso pode ser visto no fato de que os tomadores de decisão e funcionários da Fundação Renova são majoritariamente brancos, enquanto as comissões de atingidos são representadas em sua maioria por pessoas negras. Também pode ser percebido no processo de “judicialização” de temas da reparação que desloca o local de tomada de decisões do sistema de governança, no qual era possível alguma participação e influência de pessoas atingidas, para o espaço do processo judicial. No bojo dessa distribuição desigual de poder na reparação, reside um silêncio de que as pessoas negras não são “capazes” de decidir.

Avaliação dos programas da Fundação Renova

O Projeto Rio Doce analisou seis programas da Fundação Renova para entender se a questão racial havia orientado ou não o desenho, a priorização e a implementação destes. Além disso, investigou casos de discriminação racial e racismo no dia a dia da reparação.

As equipes se debruçaram sobre o Cadastro de pessoas atingidas, o Auxílio Financeiro Emergencial, o Programa de Indenização Mediada, o Programa de Proteção Social, o Programa de Diálogo, Comunicação e Participação Social e o Programa de Proteção e Recuperação da Qualidade de Vida de outros Povos e Comunidades Tradicionais.

Apesar de ser uma evidência dos impactos do racismo no processo de remediação, a invisibilidade da questão racial também se mostrou um desafio para a análise do racismo ambiental. O principal problema é que o Cadastro Integrado realizado pelas empresas e pela Fundação Renova não possui questão específica sobre a raça das pessoas e famílias atingidas.

Para conseguir entender os impactos do racismo no processo de remediação, foi preciso realizar uma triangulação de distintas fontes. Foram analisados dados de fontes primárias e secundárias, tratados a partir de uma abordagem majoritariamente qualitativa a fim de apreender as diversas experiências subjetivas das pessoas atingidas, marcadas por relações de classe, gênero e raça em contextos de desastres.

Mapa da proporção de pessoas negras nos 45 municípios atingidos pelo desastre do rompimento da Barragem de Fundão

Fonte: elaboração própria (2021), por meio de dados censitários do Censo de 2010.
Observação: as áreas em branco no mapa representam setores censitário com ausência de dados.

Foram realizadas entrevistas com 11 atores institucionais envolvidos com a proteção e defesa dos direitos das pessoas atingidas pelo desastre do rompimento da Barragem de Fundão e, mais especificamente, da população negra. Outras informações de caráter qualitativo coletadas foram as narrativas de pessoas atingidas extraídas dos seguintes documentos: jornal 'A Sirene', denúncias à Audiência Pública de Barra Longa e relatos à Ouvidoria da Fundação Renova.

Em termos quantitativos, foi realizado um esforço para caracterizar o território atingido em relação à distribuição geográfica racial. O estudo analisou dados secundários sobre distribuição racial nos setores censitários do Censo de 2010 do IBGE. Estes dados foram cruzados com as informações das pessoas cadastradas e aquelas atendidas pelos programas de Auxílio Financeiro Emergencial (PAFE) e de Indenização Mediada (PIM), com o intuito de observar as correlações entre a cobertura desses programas e a presença de pessoas negras nos territórios.

Evidências de racismo

PROGRAMA DE LEVANTAMENTO E CADASTRO DOS IMPACTOS

A ausência de dados raciais no Cadastro da Fundação Renova invisibiliza as pessoas negras, que são maioria nos territórios atingidos, suas demandas e possíveis violações de direitos que elas estejam sofrendo no processo de remediação. Sem saber precisamente a identidade racial das pessoas atingidas, os danos são submensurados ao ser desconsiderada a vulnerabilidade destes grupos, e as desigualdades tendem a se reproduzir sistematicamente.

PROGRAMA DE AUXÍLIO FINANCEIRO EMERGENCIAL

A invisibilização da questão racial colabora para distorções em relação às atividades econômicas e culturais praticadas pelas pessoas negras atingidas, causando dessa forma uma lacuna no atendimento a grupos vulneráveis em uma perspectiva racializada. Distorções ocasionadas pela invisibilização do critério raça se desdobram tanto na desassistência como na falta de priorização do atendimento emergencial de grupos vulneráveis e potencialmente elegíveis, demonstrando o descompasso entre a linguagem do processo institucional construído para realizar a reparação integral e os significados presentes nos territórios eminentemente negros.

PROGRAMA DE INDENIZAÇÃO MEDIADA (PG2)

Ausência de descrição de medidas em que seja considerada a dimensão racial dos atingidos ou medidas específicas em que possam ampliar o acesso aos Centros de Indenização Mediada (CIM) para as comunidades mais vulnerabilizadas. Relatos institucionais apontam a insuficiência dos programas indenizatórios em atender as necessidades das populações atingidas. A ausência de indicadores raciais invisibiliza o diagnóstico preciso sobre quem são as pessoas contempladas pelo PG2, deixa sem mecanismos que viabilizem uma reparação igualitária para os diversos grupos raciais e que corrija distorções causadas por essa invisibilização.

PROGRAMA DE PROTEÇÃO SOCIAL (PG5)

A Fundação Renova adota um conceito restritivo de vulnerabilidade, além de não contemplar a dimensão racial diretamente, resultando no subdimensionamento do público-alvo do programa e na invisibilização das pessoas negras atingidas.

PROGRAMA DE COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, DIÁLOGO E CONTROLE SOCIAL (PG6)

Canais de relacionamento e ouvidoria não oferecem opção de identificação da raça de quem faz a manifestação. Das 10.998 manifestações registradas na Ouvidoria da Fundação Renova, há apenas 6 manifestações em que atingidos denunciam terem sido vítimas de discriminação racial. Dos mais de 805 mil registros dos Canais de Relacionamento, há apenas 13 manifestações de pessoas que se autoidentificaram como negras ou que relataram terem sofrido algum tipo de discriminação racial.

PROGRAMA DE PROTEÇÃO E RECUPERAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA DE OUTROS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS (PG4)

Além da comunidade remanescente de quilombo do Degredo, outros povos e comunidades tradicionais, formados majoritariamente por pessoas negras, estão invisibilizados ou têm encontrado diversas barreiras de acesso ao programa. Assim, é possível perceber, a partir dos indícios do caso, o silenciamento da raça e da tradicionalidade, constituindo ambas dimensões “evitadas” pela Fundação Renova em razão de ser parte de um diagnóstico de vulnerabilidade não circunstancial, mas histórico.

O RACISMO AMBIENTAL

As pessoas que sofrem discriminação racial e vivem em áreas de risco, propensas à ocorrência de desastres, são duplamente vulneráveis –sobretudo se são privadas de recursos e acessos a bens e serviços. Vários estudos mostram que pessoas negras tendem a ser as mais prejudicadas no processo de reparação, além de terem danos agravados por conta do tratamento desigual conferido a elas. Isso é ainda mais relevante quando se considera que todas as barragens com alto risco de rompimento do Estado de Minas Gerais estão localizadas em regiões de alta concentração de população negra. Essa exposição desproporcional de grupos raciais a problemas ambientais pode ser entendida como racismo ambiental. Ele se materializa como uma forma de expressão do racismo institucional e consiste na adoção de políticas, práticas ou diretivas relacionadas ao uso e manejo de recursos naturais e rejeitos que possam afetar desproporcionalmente pessoas, grupos ou comunidades por motivos de raça ou cor. O racismo ambiental se faz presente no caso do deslocamento intencional dos rejeitos do centro da cidade de Barra Longa (MG) para o Parque de Exposições e Morro/Volta da Capela. Além disso, a Fundação Renova se exime da culpa por trincas e rachaduras encontrados nas casas de pessoas atingidas e argumenta que as formas tradicionais de construção são “inferiores”. Essa desqualificação dos conhecimentos e práticas tradicionais resulta no sentimento de humilhação que se configura como um dano sofrido pela comunidade, assim como uma forma de desqualificação e inferiorização cultural de grupos subalternizados.