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GESTEIRA

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  • GESTEIRA
    A produção do esquecimento
Foto: José Cruz/Agência Brasil

A comunidade de Gesteira, localizada no município de Barra Longa (MG), às margens do Rio Gualaxo do Norte, é uma das três comunidades que foram inundadas e soterradas pelos rejeitos de minério provenientes do rompimento da Barragem de Fundão. As outras duas comunidades são Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, situadas na zona rural de Mariana (MG).

Tal como estas, a comunidade de Gesteira, especialmente na área localizada na parte baixa às margens do rio Gualaxo, conhecida como Gesteira Velho, sofreu deslocamento físico compulsório e, portanto, foi inserida no escopo do programa de reparação (“PG”) n. 8 relativo à “reconstrução, recuperação e realocação das localidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira”. Da mesma forma, está incluída no PG 12, relativo à Memória Histórica, Cultural e Artística, que tem por objetivo “recuperar bens culturais de natureza material e preservar patrimônio cultural das comunidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira”, além de outros programas do processo reparatório.

Com prazo para conclusão inicialmente estimado para 2017, o processo do reassentamento coletivo de Gesteira, até 2022, sete anos após o rompimento da Barragem do Fundão, não chegou a ser implementado. O processo se encontra em etapas surpreendentemente preliminares, se considerado todo o tempo transcorrido e toda a mobilização e construção já realizadas pela comunidade em si.

Em outubro de 2022, momento da elaboração de uma nota técnica da FGV sobre a comunidade, a perícia judicial designada para realização do projeto havia apresentado apenas o chamado projeto conceitual ou anteprojeto arquitetônico – o qual ainda se encontra pendente de decisão judicial homologatória. Após esta etapa, caberá ainda a elaboração dos projetos básico e executivo, antes que tenha início a terceira e última etapa do procedimento estabelecido pelo Juízo Federal, de obtenção das licenças, autorizações e outorgas necessárias para realização das obras. Em outras palavras, mais grave do que dizer que o projeto não saiu do papel é a situação de Gesteira, na qual sequer “no papel” o projeto atualmente se encontra.

No que tange ao escopo do programa de reparação 12, cumpre observar que o sítio arqueológico de Gesteira – correspondente à área conhecida como Gesteira Velho, inundada pelos rejeitos - encontra-se em estado de abandono e deflagrado processo de deterioração, o que culminou na queda recente da torre da centenária igreja de Nossa Senhora da Conceição – o único remanescente arquitetônico da comunidade que havia restado de pé após a inundação, dada a robustez de seu sistema construtivo.

Apesar de a morosidade e a ineficiência das políticas reparatórias alcançarem as três comunidades, é sobre Gesteira que incide maior processo de invisibilização.

“(...) na região tinha muitas fazendas. Agora não tem mais porque algumas foram derrubadas, acabaram. Assim, os fazendeiros precisavam de uma demanda grande de gente para manter a fazenda, aí cada fazendeiro tinha uma coloniazinha de moradores. Os trabalhadores que queriam ficar independentes, faziam uma casa lá e perto da igreja em Gesteira. Aí podia trabalhar para quem quisesse. Agora, aqueles que não podiam fazer sua casa, aí moravam em roda das Fazendas.”
Gesteira: origem da comunidade e terras de patrimônio

A formação territorial de Gesteira se dá pela ocupação e construção de casas por trabalhadores rurais ao redor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, nas chamadas “terras de santo” ou, conforme nomeado pelos atingidos, nas terras de patrimônio, dado que de domínio da Igreja. Egressos das fazendas locais, tais trabalhadores estiveram até recentemente submetidos a regimes de trabalho que remetem às nuances do trabalho escravo, em sua perspectiva contemporânea, após o fim oficial do regime escravagista.

“Até tinha umas famílias que não moravam em colônia, que era nas fazendas, né? Moravam ali na Gesteira, no terreno da igreja. [...] todo mundo tinha seu lote, eu era proprietário, mas o dono mesmo da terra mesmo era a Igreja.”
Gesteira: território atingido

Esta comunidade, com modos de vida campesinos e fortes elementos de tradicionalidade - indicativos de se tratar de comunidade tradicional – é, desde a década de 1970, atingida pela mineração, sofrendo seguidamente com os danos socioeconômicos dela decorrentes, dentre eles: diminuição da segurança pessoal; perdas patrimoniais pela destruição dos quintais produtivos para instalação de mineroduto; poluição do rio; trincas nas casas pelo tráfego de veículos quando da construção da infraestrutura da mineração na região, dentre outros danos.

“Eles [as mineradoras] já causavam bastante dano para a gente, (...) largavam as estradas destruídas, com poeira e lama demais das bordas, que eles mexiam com máquina pesada. E não arrumavam igual estava antes não, deixavam sempre problema pra gente arrumar lá depois. Era mata-burro, destruído, porteira arrebentada. Aí a gente ficava reclamando. Fora a terra que eles jogavam no terreno da gente, que a máquina empurrava o material em cima e ela descia para o terreno. Nós cansamos de reclamar das trincas das casas, mas não adiantava né?”.

ENCHENTE DE 1979

O povoado de Gesteira Velho foi atingido em 1979 por uma enchente que promoveu o primeiro processo de deslocamento compulsório da comunidade. De acordo com os atingidos, essa enchente, bastante atípica em relação a outras, teria sido provocada pelo recém-instalado empreendimento minerário na região que, em razão das intensas chuvas que caíram no período, teria aberto as comportas de uma barragem situada sobre a comunidade.

O sitiamento da comunidade de Gesteira por barragens de mineração - indicativa da verossimilhança das alegações e da interpretação dada pelos atingidos sobre a atipicidade da enchente de 1979, sobretudo considerando a coincidência temporal com a instalação da mineração na região - encontra-se identificado nos dados obtidos a partir do Sistema de Gestão de Segurança de Barragem de Mineração:

Barragens de Mineração de Alto Risco próximas a Gesteira (MG)

Fonte: sistema de Gestão de Segurança da Barragem de Mineração (SIGBM) da Agência Nacionl de Mineração (ANM). Datum SIRGAS 2000. EOABORADO POR FGV DIREITO SP - Centro de Direitos Humanos e Empresas. Outubro de 2022.

“As pessoas mais antigas falavam que tinha relação com as mineradoras, principalmente com essa Samarco, porque ela tinha um armazenamento grande de água no reservatório, e sempre as pessoas ficavam falando, ““nossa, no dia que isso aí estourar, vai acabar com Gesteira”” E acabou que eles abriram essa comporta lá, porque estava chovendo muito. Aí abriu, e essa água veio descendo mansamente, mas ela inundou Gesteira toda.”

 

“(...) as criações foram todas embora [na enchente de 79]. Nós tínhamos paiol de milho, arroz, feijão. Tudo foi embora. No outro dia estava limpo. Mas foi um dilúvio grande, viu.’

A Construção de Mutirão

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Em um processo de deslocamento compulsório decorrente da enchente de 1979, a partir da doação de um terreno por um fazendeiro da região, se deu a formação do novo núcleo de ocupação na parte alta da comunidade, na zona hoje chamada Mutirão, cujo nome remete ao processo de construção das casas. Por meio de materiais cedidos pelo governo, da autoconstrução e do trabalho coletivo e comunitário, Mutirão foi construído em um ano, e ao lado de Gesteira Velho, passou a compor e a formar esta comunidade que genericamente se conhece como Gesteira.

Ponte que liga Gesteira Velho a Mutirão
Foto: José Cruz/Agência Brasil

“Nós viemos para cá, mas nós não desprezávamos lá não. Aliás, um monte de gente fez casa lá outra vez pra morar com as famílias, mas nós íamos para lá toda noite, de dia também... festa, missa... é tudo lá. Era, até que essa barragem acabou com ela.”

Gesteira Velho

“Você ia ficar boba de ver tanto menino vindo de Gesteira, indo e vindo todo dia, de manhã e à tarde. Mas muita criança. Hoje pode contar... os meninos estão estudando lá no Taboão.”

“A escola (...) era outra. Era ali perto mesmo, mas era outra. É era uma sala só. Era uma casa assim, um salão grande, antigo de madeira, mas com uma sala só. Em 79 levou tudo embora. Levou embora essa antiga onde a gente estudava. Aí construiu uma nova.”

Gesteira Velho: Igreja da Nossa Senhora da Conceição
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

“Eu coroei naquela igreja ali, ia desde pequenininha, sabe? A minha mãe falava que eu coroei com dois anos na igreja lá e fui crescendo.”

“Nossa. Um lugar simples, mas era bom demais. O povo era muito unido. Velho com o novo, com criança, com tudo. Era um povo muito alegre mesmo. Festa lá era animada demais, toda vida foi! “

“(...) Fazia papel de cruz e cortava as bandeirinhas, aí fazia aqueles cordões até lá em cima. Mas tudo muito bonito. A gente levantava o mastro (...) a gente não vê mais isso”

“Essa igreja é velha. Isso é do tempo da escravidão ainda parece. Não lembro, não. Já está lá pronta antes de eu nascer.”

“A igreja é antiga. É de mil setecentos e quatorze parece, tem uma placa lá.”

Gesteira Velho: o campo

“Tinha a madrinha e o padrinho da bola, sabe? Antes, os padrinhos compravam uma bola nova, davam para o time, levavam aquele negócio tudo enfeitado, com papel crepom, tudo com umas fitas, um trem parecendo um enfeite mesmo. Aí chegava lá, fazia uma oração, aí a madrinha colocava a bola no chão e dava um chute. Você tinha que jogar uma bola com ela toda cheia de papel até o papel soltar todo.”

Gesteira Velho: A Venda

“Lá era em geral forte. Lá era em geral, porque o pessoal da região que dos outros municípios muito fazia compra lá. É, é, tinha de um tudo porque que ele tinha facilidade, porque ele morava em Mariana e ele é (...) trabalhava como padaria, ele é tinha açougue, matava boi, final de semana vendia gás. Tudo em geral tinha nessa mercearia dele. Aí o pessoal daqui tudo de manhã, tinha relação, ia lá, comprava. Tudo que precisava ia lá, encontrava”.

Gesteira Velho: o rio

“Gostoso... a gente chegava na beira do rio assim ó, aonde as donas lavavam as vasilhas, né? Que antigamente lavava vasilha tudo no rio, água tudo limpinha. Olhava para o meio do rio, cada traíra desse tamanho assim oh, cascudo, tinha peixe demais! A vida gostosa demais .”

Gesteira Velho: fartura e plantio
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

“A nossa região lá era uma região rica. Você podia ir no rio pescar, comer o peixe. Você jogava uma semente na beira lá, você nem precisava ficar muito em cima não, parece que dava pra você de graça, de tanta coisa rica que tinha em roda ali: manga, laranja, abóbora. Época de dezembro você tinha o milho verde, tanta coisa... isso tudo acabou. Agora a terra tá lá improdutiva."

“Você vê os pé de couve que tem aí né? E era assim todo mundo tinha. Aí os meninos vinham, os meus tiozinhos vinham de Belo Horizonte, que meus tio mudou pra lá, alguns, né? Mudou pra lá, vinha, buscava, levava caminhão cheio, caminhonete cheia [de produtos da terra: hortaliças, frutas], tá? Cheia de verdura e caixa de banana lá. Cada penca de banana tinha trinta, quarenta bananas."

Gesteira Velho: trabalho e dignidade
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Quintais produtivos em Gesteira Velho e Mutirão
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Nossas flores
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Hortas e pomares de mutirão
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

“Mulheres guerreiras, lutadoras são bordadeiras do Gesteira”

Bordados de Dona Creusa representativo de sua experiência com o desastre

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

O bordado desvela um conjunto de práticas culturais de Gesteira. Nele está representado seu sistema agrícola, e na oportunidade em que Dona Creusa explicou sobre os elementos que compõem a obra, foi que se soube, por exemplo, do sistema de troca em que as unidades familiares produziam capim, e um dos moradores, o leite.

Outro ponto que chama a atenção são as expressões relacionadas com as mulheres de Gesteira. No bordado, lê-se: “Mulheres guerreiras, lutadoras, são bordadeiras do Gesteira”, encimando a obra; ao final, observa-se: “Oiê mulher rendeira, oiê mulher rendá, tu me ensina a fazer renda, eu te ensino a bordar”.

Outro detalhe que chama a atenção foi a reconstituição pela atingida do “antes” e do “depois” do desastre. A parte superior é colorida, vibrante, alegre. Tem o rio “verdinho”, como ela explicou, cheio de peixes. Já na parte inferior, a cor avermelhada do rejeito de minério de ferro domina e homogeiniza tudo. Não há vida, só há a tristeza, como dito por ela na ocasião.

As técnicas de bordado foram aprendidas em Gesteira em oficinas realizadas pela associação de mulheres da comunidade, que além de bordados, ensinou receitas de doces, corte de cabelo e outros procedimentos estéticos.

Detalhes da obra de Dona Creusa: representação das casas do Gesteira Velho

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Detalhes da obra de Dona Creusa: o leiteiro puxando capim numa carroça

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Detalhes da obra de Dona Cleusa: o gramado em frente da Capela, da Escola e do Salão Paroquial, todos representados

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Detalhes da obra de Dona Creuza: o campo de futebol e outra capelinha menor

Foto: José Cruz/Agência Brasil