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POPULAÇÕES INDÍGENAS

Gavias SliderLayer - COMUNIDADES TRADICIONAIS

  • POVOS INDÍGENAS
    Danos materiais e imateriais aos
    povos indígenas Tupiniquim e Guarani

Desastres, naturais ou tecnológicos, tendem a impactar de forma mais severa populações que já se encontram em situação de vulnerabilidade. Esse é o caso dos povos indígenas Krenak, Tupiniquim e Guarani, que habitam territórios atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão.
 
No âmbito do diagnóstico dos danos socioeconômicos decorrentes do rompimento da Barragem de Fundão, o Projeto Rio Doce realizou estudo para diagnosticar os danos socioeconômicos sofridos pelos povos Guarani e Tupiniquim que habitam as Terras Indígenas Tupiniquim, Caieiras Velhas II e Comboios, localizadas em Aracruz (ES). Destacam-se dois pontos. O primeiro, que não foram elaborados pela equipe do Projeto Rio Doce estudos sobre os danos sofridos pelo povo indígena Krenak, em respeito à autodeterminação desse povo no que tange às suas próprias estratégias ao longo do processo de reparação.

E o segundo, que há outros povos e comunidades indígenas que se consideram atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, mas que até o momento não foram reconhecidos como atingidos no âmbito do processo de reparação em curso, como é o caso da comunidade indígena de Areal (ES).
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Povos Tupiniquim e Guarani

Os povos indígenas atingidos pelo desastre das etnias Guarani e Tupiniquim vivem na região estuarina e costeira do litoral capixaba, no município de Aracruz, nas Terras Indígenas Tupiniquim, Caieiras Velha II e Comboios, conformadas por 12 aldeias. Em termos numéricos, a TI Caieiras Velha II possui 57,39 hectares e conta com aproximadamente 20 pessoas, a TI Comboios possui 3.862,14 hectares e aproximadamente 534 pessoas, e a TI Tupiniquim tem extensão de 14.282,79 hectares e aproximadamente 2.544 integrantes.

Aldeias e entorno das TI Tupiniquim e Ti Caieiras Velha II em Aracruz (ES)
Aldeias e entorno da TI Comboios em Aracruz (ES)

As Terras Indígenas dos povos Tupiniquim e Guarani recobrem uma parcela do sistema fluvial e estuarino do qual fazem parte os rios Comboios, Riacho, Piraquê-Açu, Piraquê-Mirim e Macacos, os córregos do Sauê, do Guaxindiba e do Sahy, bem como numerosos pequenos cursos de água e seus tributários. Há nesta área uma diversidade de ecossistemas, como a floresta atlântica de tabuleiro, a restinga e o manguezal. A TI Comboios situa-se cerca de 11 km ao sul da foz do Rio Doce, e as TI Tupiniquim e TI Caieiras Velha II têm seu limite sul no rio Piraquê-Açu, o maior estuário do estado, que recebe regularmente um grande volume de água das marés, alcançando 13 km rio acima.

Dimensões temáticas e danos socioeconômicos identificados

O trabalho das equipes do Projeto Rio Doce com os Tupiniquim e Guarani iniciou-se a partir da análise dos impactos identificados no Estudo do Componente Indígena (ECI), realizado pela consultoria técnica independente Polifônicas Consultoria Ambiental, contratada pela Fundação Renova, conforme Termo de Referência emitido pela Funai. Após análise, sistematização e tratamento jurídico (consistente na subsunção do fato à norma) dos impactos identificados pelo ECI, foram realizados encontros e entrevistas com lideranças desses territórios para avaliar se houve a adequada compreensão dos danos por parte da equipe da FGV, bem como para valorar os danos e complementar o diagnóstico com eventuais danos que não apareceram no ECI ou que se agravaram desde então.

Além da realização de encontros, oficinas e entrevistas com membros das comunidades, a equipe da FGV acompanhou o processo de reparação desses povos na Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades Tradicionais (CT-IPCT) – no âmbito do Sistema de Governança CIF, instituído pelo TAC-GOV – desde o início de 2019 e em rodadas de negociação de medidas reparatórias realizadas entre a comunidade, Fundação Renova e Instituições de Justiça ao longo do ano de 2020.

Após a validação dos danos em processo de consulta às comunidades, realizou-se uma segunda etapa do tratamento jurídico, no qual identificou-se os danos jurídicos infligidos por cada um dos danos socioeconômicos identificados e apontou-se parâmetros e possibilidades probatórios e reparatórias por meio de medidas indenizatórias e não indenizatórias. Ao longo de todo o processo adotou-se como premissas a Abordagem Baseada em Direitos Humanos para a Resposta e Reconstrução de Desastres envolvendo Empresas (ABDH), a reparação integral orientada para a “reconstrução melhor” (Build Back Better) e o leque de possibilidades reparatórias para a reparação integral previsto nos “Princípios e Diretrizes Básicas sobre o Direito à Remédios e à Reparação para Vítimas de Graves Violações das Normas Internacionais de Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário” (ONU, A/RES/60/147, 2005).

“Metade da nossa vida, como povo indígena, foi embora, com o desastre, junto com o Rio e com o mar, nosso sustento vem do rio e do mar.”

Foto: José Cruz/Agência Brasil

“A lama chegou e afetou nosso psicológico. Porque não tínhamos noção do problema e fomos vendo na mídia. Diziam cuidado não pode comer peixe. Aí pensei: Meu Deus e agora? Impactou nosso espírito. Não sabíamos a quem recorrer. Mudou totalmente nosso modo de vida.”

A partir desse processo, os danos socioeconômicos ocasionados aos Tupiniquim e Guarani, até o fechamento do relatório, foram organizados em 11 dimensões temáticas dinâmicas e que se relacionam entre si, conforme figura a seguir:

Dimensões temáticas e danos e riscos identificados
Terras, territóriose recursos naturais

Terras, territórios
e recursos naturais

  • Comprometimento da fruição de um meio ambiente equilibrado e do uso e gozo dos recursos naturais necessários para a subsistência física e cultural tradcional
  • Comprometimento do acesso à água potável suficiente, segura e aceitável para usos pessoais e domésticos
  • Comprometimento do acesso a fruição da água segura para finalidade de lazer e sobrevivência sociocultural
  • Comprometimento das condições adequadas necessárias para a permanência nos territórios tradicionais
  • Comprometimento do acesso aos territórios tradicionais
Trabalho, renda e subsistência

Trabalho, renda e subsistência

  • Perda ou comprometimento dos meios de subsistência
  • Aumento de gastos para manutenção das condições de vida
  • Interrupção ou diminuição de renda
  • Perda de estoque
  • Comprometimento da livre escolha de seus próprios meios de desenvolvimento econômico e subsistência
Identidade, saberes, crenças e práticas tradicionais

Identidade, saberes, crenças e práticas tradicionais

  • Comprometimento da manutenção e transmissão dos saberes e práticas tradicionais
  • Comprometimento do adequado desenvolvimento sócio-cultural de crianças e de adolescentes
  • Impossibilidade da reprodução dos modos de vida dos povos indígenas
Redes de relação socioculturais

Redes de relação socioculturais

  • Alterações negativas nos laços sociais, comunitários e redes de parentesco
  • Alterações negativas nas relações familiares
Alimentação

Alimentação

  • Comprometimento da alimentação saudável e em quantidade adequada
  • Comprometimento da alimentação saudável com qualidade adequada
  • Comprometimento da alimentação culturalmente adequada
  • Comprometimento de alimentação economicamente acessível
Educação

Educação

  • Comprometimento da educação adequada no território
Saúde

Saúde

  • Comprometimento do acesso à saúde culturalmente adequada
  • Comprometimento e risco de comprometimento da saúde mental
  • Comprometimento e risco de comprometimento da saúde física e nutricional
Igualdade e não discriminação

Igualdade e não discriminação

  • Comprometimento do papel social da mulher
Autodeterminação

Autodeterminação

  • Comprometimento da autodeterminação dos povos indígenas
Vida digna, uso do tempo e cotidiano, perspectivas futuras e lazer

Vida digna, uso do tempo e cotidiano, perspectivas futuras e lazer

  • Diminuição da qualidade de vida
  • Perda de tempo livre e comprometimento das atividades de lazer
Processo de reparação/remediação

Processo de reparação/remediação

  • Falta de acesso à informação adequada e de transparência
  • Perda do tempo útil/produtivo com o processo de reparação/remediação
  • Abuso do direito de participação efetiva no processo de reparação/remediação
  • Barreiras de acesso ao processo de reparação/remediação
  • Abuso do direito de prazo razoável e de efetividade do processo de reparação/remediação
  • Desrespeito ao autogoverno e às especificidades das comunidades indígenas no processo de reparação/remediação
  • Agravamento da vulnerabilidade com o processo de reparação/remediação
  • Abuso do direito de igualdade no processo de reparação/remediação
  • Risco de perda das identidades étnicas Tupiniquim e Guarani
Fonte: elaboração própria (2022)

"O índio trabalha dia e noite fazendo artesanato. Pegava meia dúzia de peixinho e já traz. E já come. Antigamente era assim. Agora tá muito difícil para a gente. [...] agora não tem mais material para tirar da mata. Tá ruim."

Valoração integrada dos danos sofridos

Os danos socioeconômicos causados aos povos Tupiniquim e Guarani demonstram múltiplas afrontas à dignidade individual e aos valores coletivos desses povos, comprometendo a manutenção e transmissão de seus modos de vida e, assim, ameaçando suas identidades étnicas. Dentre os 36 danos acima destacados, o desastre comprometeu as fontes de renda e subsistência desses povos, gerando alteração compulsória dos hábitos alimentares e comprometimento do acesso à água potável em qualidade adequada para consumo e uso pessoal, doméstico e para irrigação. Com isso, a vulnerabilidade social desses povos foi exacerbada, com geração de insegurança alimentar, conflitos intrafamiliares e intracomunitários, danos à saúde mental, física e nutricional, bem como comprometimento de acesso a territórios tradicionais e no interior das próprias TIs. Somados os abusos a esse amplo leque de direitos fundamentais dos Tupiniquim e Guarani, sua autodeterminação fica comprometida e suas identidades étnicas estão sob risco de extinção.

Por fim, a realização da Valoração Integrada dos danos sofridos reuniu metodologias que trabalham os danos na perspectiva monetária e não monetária, explicitando a relevância de aspectos materiais e imateriais com vistas à reparação integral. Para tanto, compreendendo o valor no sentido de importância — quando se trata da valoração não monetária — ou atribuindo valores monetários às perdas materiais, foram levantadas e registradas narrativas dos Tupiniquim e Guarani, entrevistados pesquisadores e estudiosos e realizada revisão de literatura.

"O artesanato saía bastante. Todo dia a gente vendia aquele tanto de dinheiro. Os meninos iam na praia e traziam um cesto de peixe. A gente dividia. A gente comia tranquilamente. A água está suja, turista não vem mais. [...] nem turista vem mais porque o mar tá sujo.”

Interrupção do trabalho e perda de renda

A pesca, catação e mariscagem eram amplamente praticadas pelos Tupiniquim e Guarani dos territórios atingidos no Espírito Santo, caracterizando a sua principal fonte de renda. A chegada da lama de rejeitos de mineração ao oceano Atlântico, ao estuário do Piraquê-Açu e ao Rio Comboios levou à interupção dessas atividades, em função da proibição dessas práticas em parte da região litorânea e pela degradação ambiental dos ecossistemas. As estimativas feitas pelas equipes do Projeto Rio Doce de perda de renda desses povos indígenas com a atividade pesqueira deram-se a partir da diferença entre a projeção de um cenário hipotético de ausência do desastre (contrafactual) e um cenário pós-desastre.

Estimativa de renda mensal e acumulada para a pesca pré-desastre (*)

(*) Fonte: FGV/Valores de setembro de 2020, em R$

(**) Contrafactual 1: apresenta parâmetros de renda pré-desastre, com estimativas de produção média por indígena de 54 kg/mês e uma relação custo/receita de 5%. Contrafactual 2: apresenta parâmetros de renda pré-desastre, com estimativas de produção média por indígena de 54 kg/mês ao custo/receita de 15%. Contrafactual 3: apresenta parâmetros de renda pré-desastre, com estimativas de produção média por indígena de 66 kg/mês ao custo/receita de 5%. Contrafactual 4: apresenta parâmetros de renda pré-desastre, com estimativas de produção média por indígena de 66 kg/mês ao custo/receita de 15%.

Populações remanescentes de quilombos

A lama com os rejeitos da Barragem de Fundão também atingiu populações remanescentes de quilombos que habitam os municípios atingidos, agravando situações de vulnerabilidade.

No município de Linhares (ES), na região norte do estado, próximo ao distrito de Pontal de Ipiranga, localiza-se a Comunidade Remanescente de Quilombo do Degredo (CRQ). O território encontra-se no litoral, em uma região considerada rural, a aproximadamente 22 km a norte da foz do Rio Doce.

A comunidade é constituída de núcleos familiares que mantêm laços de consanguinidade, afinidade e compadrio entre si, estabelecendo uma rede de interações comerciais e simbólicas. Os modos de vida das cerca de 145 famílias, marcados por expropriações e conflitos com fazendeiros e grandes empreendimentos, foi agravado a partir da chegada dos rejeitos da Barragem de Fundão.

Os rejeitos alcançaram o mar de Degredo no final de novembro de 2015 e, em fevereiro do ano seguinte, após a cheia de verão, foi observada uma grande mortandade de peixes no rio Ipiranga.

Assim como no caso dos Krenak, não foram elaborados pela equipe do Projeto Rio Doce estudos sobre os danos sofridos pela comunidade de Degredo, em respeito à autodeterminação desse povo no que tange às suas próprias estratégias ao longo do processo de reparação.  

No entanto, nas Matrizes Territoriais do Vale do Aço e da Região Estuarina, Costeira e Marinha do Espírito Santo, por exemplo, foram identificados danos específicos a povos e comunidades quilombolas e tradicionais, tendo sido realizadas escutas com as comunidades quilombolas de Sapê do Norte e com comunidades que se identificam como povos de mangue. Ressalta-se que os danos e parâmetros identificados nestas matrizes, sintetizados na página “A Reparação”, podem ser estendidos a outras comunidades quilombolas e tradicionais atingidas pelo desastre, mas que até o momento não foram reconhecidas, como é o caso dos pescadores, faiscadores e garimpeiros tradicionais do Alto Rio Doce, nos municípios de Rio Doce, Santa Cruz do Escalado, Barra longa, Mariana e Acaiaca e povoados de Chopotó e do entorno da bacia do Rio do Carmo. 

Por fim, deve ressaltar que nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra (ES) encontra-se o Território Quilombola do Sapê do Norte, que abriga aproximadamente 1.200 famílias em ao menos 33 comunidades remanescentes de quilombos localizadas ao longo dos vales dos rios Cricaré e Itaúnas. Organizam-se em sítios familiares que mantém laços de compadrio e de parentesco entre si, efetuando redes de solidariedade, troca e culturais que remontam à uma história comum.