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MULHERES

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  • MULHERES
    Desastre acirrou a situação de
    vulnerabilidade em áreas atingidas

Os danos gerados pelo rompimento de Fundão impactaram de maneira particular a situação das mulheres que vivem nos municípios atingidos. Da forma como apresenta o estudo do Projeto Rio Doce, conduzido pela FGV, a estrutura patriarcal, machista, racista e sexista da sociedade brasileira coloca as mulheres, em especial mulheres não brancas, em situações de maior vulnerabilização, o que tanto acarreta a elas danos específicos quanto faz com que os danos causados pelo desastre possam ser mais graves no seu caso, assim como mostra a literatura e estudos de casos comparados.

Diante desse contexto, a pesquisa realizada pela FGV partiu de uma abordagem qualitativa que contemplou narrativas de mulheres atingidas, entrevistas com pesquisadoras especialistas em questões de gênero e pesquisas bibliográficas. Foram realizadas sete rodas de conversas que, ao todo, tiveram a participação de 73 mulheres atingidas, moradoras de 19 municípios afetados pelo desastre.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

A análise dos dados permitiu um olhar para danos experenciados exclusivamente por mulheres, as desigualdades de gênero que agravam ou intensificam experiências de dano, a geração de situações de violência contra mulheres, as dificuldades enfrentadas por elas no processo de reparação, entre outros achados.

Essa avaliação indica a importância de um olhar interseccional para questões de gênero, classe e raça. O impacto negativo do desastre sobre as mulheres também se associa à ideia de racismo ambiental. De acordo com este conceito, algumas populações são mais atingidas por problemas ambientais em função de decisões políticas inseridas em modelos sociais produtores de desigualdades, frutos da colonização patriarcal que vulnerabiliza os não brancos, em especial mulheres negras.

A partir do estudo da situação das mulheres nos municípios atingidos pelo desastre, foi possível separar os principais tópicos de discussão de gênero em três categorias e oito subcategorias:

RELAÇÕES ECONÔMICAS E CONDIÇÃO SOCIAL

O desastre impactou a condição econômica das mulheres atingidas, o que foi agravado por problemas relacionados com reparação e não reconhecimento da condição de atingidas, sobrecarga doméstica e cuidados relacionados com água e alimentação.

Autonomia financeira e não reconhecimento da atividade econômica das mulheres no processo de reparação

Há muita discrepância no reconhecimento de mulheres como atingidas se comparado aos homens quando se trata de pagamentos de auxílios financeiros e/ou indenizações no processo reparatório. Diversas atividades econômicas praticadas por mulheres não são reconhecidas pelo processo de reparação, o que as invisibiliza ou as trata como dependentes de seus maridos. Isso faz com que percam sua autonomia financeira, gera endividamento e maior entrada no mercado de trabalho informal. Há também apropriação do trabalho feminino como cuidado ou ajuda, e não como atividade digna de remuneração e decorrente indenização.

Além disso, as instituições responsáveis pela reparação não provêm informações suficientes sobre possíveis medidas para ressarcir financeiramente as mulheres atingidas na perspectiva de suas especificidades, tampouco mobilizam investimentos e esforços nesse sentido.

“A gente foi submetida a um modelo patriarcal no cadastro, pois somente o homem teve reconhecimento. No meu caso, até hoje se meu marido não é reconhecido eu não existo para eles. Isso porque meu negócio é diferente do dele. É uma luta para ser reconhecida, até hoje eu não consigo.”
Sobrecarga doméstica e perda de rede de apoio

As mulheres atingidas pelo desastre percebem aumento dos trabalhos domésticos que desenvolvem, inclusive do cuidado familiar e com a comunidade. Essa maior sobrecarga doméstica não está sendo endereçada pelo processo de reparação. Tais trabalhos são historicamente não remunerados e geram desgastes e preocupações.

Diversos fatores têm contribuído para o aumento do trabalho das mulheres com o cuidado dos seus lares e de suas famílias. As mudanças bruscas impostas pelo desastre sobre os modos de vida trouxeram alterações na rotina das pessoas e famílias, resultando em mais tempo dedicado aos ambientes domésticos.

“A questão do aumento da jornada de trabalho acaba atrapalhando a relação entre mães e filhos, porque acabamos tendo um tempo reduzido para nos dedicarmos a eles. Acabamos deixando, não queria usar essa palavra, mas deixando meio que de lado para nos dedicar ao trabalho, que é uma necessidade imediata.”
Alimentação

A diminuição da qualidade da alimentação dessas mulheres e suas famílias, aliada à constante incerteza sobre a qualidade da água com a qual convivem, gera a elas intenso sofrimento social e adoecimento emocional. Sendo a alimentação uma face do trabalho doméstico que tende a ficar, sob a legitimação social, a cargo das mulheres, elas atualmente sofrem com a realidade de uma dieta nutricional mais pobre do que possuíam anteriormente. A demanda por assistência estatal ou social para acesso a cestas de alimentos também é ampliada.

“Quando boto um peixe na mesa eu já fico pensando – e não é em mim não, gente, é na minha geração, na dos meus netos. Porque realmente está tudo contaminado e é metal pesado mesmo.”

RELAÇÕES SOCIAIS, VIOLÊNCIA E SAÚDE

Os danos comprometeram de forma significativa as redes de relações sociais e a saúde das mulheres. Tais cenários têm impulsionado o agravamento de quadros de vulnerabilidade social preexistentes bem como a exposição das mulheres atingidas a novas situações de risco relacionadas à intensificação de conflitos e de violências e a adoecimentos físicos e mentais.

Brigas, desuniões e violência doméstica

O rompimento da barragem gerou profundas alterações nas redes de relações sociais das pessoas atingidas ao longo da bacia do Rio Doce, repercutindo de forma específica em suas vidas. Os danos ambientais geraram efeitos em cadeia nas relações estabelecidas pelas pessoas com essas localidades e, consequentemente, em suas relações entre si. A fragilização dos vínculos em função também da perda de espaços de partilha de sentimentos e situações diversas afeta aspectos subjetivos e emocionais.

Os danos observados nas redes de relações dessas mulheres e em suas participações em espaços sociais e políticos faz com que elas tenham boa parte de suas referências e dinâmicas de vida comprometidas. 

Em um contexto de incidência de conflitos cada vez maior, a perda de suportes emocionais e espaços de ajuda mútua pode se tornar mais um fator de fragilização e agravamento de situações de vulnerabilização. Há uma multiplicidade de problemas sociais em torno de conflitos domésticos, como a vulnerabilidade social, a dependência econômica em relação ao parceiro e a falta de políticas públicas como assistência médica, escolar ou de moradia. Segundo estudos sobre gênero e desastres, após o evento traumático algumas mulheres experimentam a violência pela primeira vez ou acabam suportando maiores níveis de agressões.

Outras questões destacadas nesses estudos giram em torno da demora ou ineficiência na resolução de solicitação de mudança/separação de moradias temporárias por parte de mulheres vítimas de violência. As narrativas enunciadas pelas mulheres atingidas nas interações realizadas pela FGV demonstraram diferentes casos de violência, como psicológica, moral e física.

“Hoje está péssimo, ninguém pode estar mais unido. Hoje é desunião. Inclusive, é filho contra mãe. Ficando todo mundo de mal por causa da situação que está vivendo.”
Saúde

Os impactos do desastre no cotidiano das mulheres dentro e fora de casa gerou desgastes físicos e psicológicos. O estudo registrou diversos relatos de mulheres adoecidas, sobrecarregadas, deprimidas e ansiosas na bacia do Rio Doce. Para além de casos individuais de adoecimento, o contexto analisado relaciona-se a processos de sofrimento social engendrados pelo desastre, uma vez que as situações narradas não compreendem somente condições físicas e psicológicas pessoais, mas também experiências interpessoais.

“A vida ficou muito triste, especialmente para as mulheres. Porque as mulheres pensam muito essa questão da saúde, da educação, da cultura. Lazer é uma palavra que as mulheres quase não têm falado... A vida multiplicou de problemas. Então, tenho visto gente tomando remédio que não tomava, fazendo tratamento, e muita gente depressiva.”

EDUCAÇÃO, FUTURO E RESISTÊNCIA

O rompimento da barragem afetou os futuros projetados pelas mulheres para si, suas famílias, territórios e comunidades. Isso tem influência sobre o cuidado consigo e com terceiros e sobre a transmissão intergeracional de conhecimentos. Também traz alguns apontamentos sobre as resistências possíveis e operadas por essas mulheres nos espaços afetados pelo desastre.

Sonhos e projetos de futuro

A desestruturação do cotidiano dessas mulheres gerou a desestruturação de suas perspectivas de futuro. Diversas dessas perspectivas foram remodeladas e, hoje, estão ligadas à retomada de suas vidas vividas no passado, antes do desastre. Quando perguntadas sobre projetos de vida e futuros sonhados para si, as mulheres muitas vezes os atrelam ao bem-estar da família, em especial dos filhos.

“Toda a vida eu tive o sonho muito grande de montar uma cozinha para as minhas filhas trabalharem. Isso vai ficando cada vez mais longe.”

Educação e transmissão intergeracional de conhecimento

A pesquisa revela que é comum entre mulheres, sobretudo aquelas que estão em situações de maior precarização, que seus projetos de vida profissional e processos de formação educacional sejam encerrados em decorrência das altas demandas de trabalhos domésticos. Em função da sobrecarga de cuidados, essas mulheres interrompem sonhos, formações e projetos para si, o que alimenta um ciclo em que continuam sendo pouco valorizadas por todo seu trabalho e não têm tempo ou condições para se alçarem a outras atividades de formação ou profissionais.

Além disso, como as mulheres têm papel central na estrutura familiar e na gestão dos cuidados com a família e comunidade, é comum que a educação das crianças, adolescentes e jovens fique prioritariamente sob sua responsabilidade. Após o desastre, elas não conseguem dedicar tempo que consideram suficiente para auxílio na educação formal de seus filhos e a educação informal que ocorria por meio da transmissão intergeracional de conhecimentos em momentos coletivos se arrefece. Tais fatos narrados prejudicam vínculos das gerações futuras com sua ancestralidade, já que saberes são atualizados na prática cotidiana e sua interrupção acarreta perdas materiais e simbólicas.

"Hoje não tem mais para trabalhar, vai fazer o que, né? Muito jovem por causa disso aí estão entrando no roubo, nas drogas na bebedeira.”
Resistência

Apesar dos impactos específicos sentidos pelas mulheres em regiões atingidas pelo desastre, sua responsabilização pelo cuidado familiar/comunitário aciona nelas o ímpeto da resistência. A atribuição histórica dada às mulheres pela regência do cotidiano da família faz com que, mesmo que de forma invisibilizada e sob baixo reconhecimento social, elas sigam assumindo o lugar de mantenedoras da vida após o desastre.

“Mulher, nós somos guerreiras. Porque nós não ficamos paradas, nós tentamos inovar todos os dias. É como nós estamos conseguindo driblar essa situação. Por mais dificuldade que nós estamos passando, estamos conseguindo driblar. Faz um biquinho aqui, um biquinho ali para ajudar em casa. Mas, as coisas não estão como que eram antes.”